20. Uma Dose de Auto-Ajuda (e Auto-Imunidade)
O apartamento de Will estava
decorado como se um arco-íris vomitasse tons pastéis. Grace, usando um
tapa-olho cor-de-rosa choque com penas, tentava equilibrar um prato de
biscoitos sem glúten, sem lactose e provavelmente sem gosto também.
"Will, você tem certeza que
essa tal de Karen sabe o que está fazendo? Usar cristais para curar minha
uveíte parece... pouco convencional."
Will, impecavelmente vestido como
sempre, revirou os olhos. "Grace, é só a Karen sendo Karen. Relaxa, toma
um chá de kombucha e deixa a energia dos cristais fluir."
A porta se abriu num estrondo,
revelando Jack em roupas de ginástica brilhantes e Karen, em um vestido de
paetês, carregando uma pirâmide de ametista gigante.
"Chegamos para salvar você
da tirania da sua própria imunidade, querida!" anunciou Karen, quase
derrubando um abajur caríssimo.
"Jack, explica para elas.
Você é o especialista em autoimunidade agora," disse Karen, jogando a
pirâmide no sofá, que gemeu em protesto.
Jack empinou o nariz. "Bem,
como todos sabem, meu sistema imunológico é um artista dramático. Ele acorda um
dia e decide que minhas próprias células são o inimigo! Tipo, 'Olá,
melanócitos, vocês são fofos, mas vou ter que eliminá-los hoje!'"
"Então, basicamente,"
continuou ele, "a tolerância imunológica de Grace foi para o espaço!
Aqueles linfócitos T traidores viraram contra ela, produzindo anticorpos como
se não houvesse amanhã para atacar seus próprios olhos!"
Will suspirou. "Jack, você
assistiu a um documentário no YouTube de novo, não é?"
"Documentário? Isso foi um
drama médico estrelado por células falantes! Tinha até um triângulo amoroso
entre um linfócito B, um anticorpo e um vírus charmoso."
Grace, massageando o olho
dolorido, tentou intervir. "Ok, chega de drama imunológico! O que eu faço
com essa coisa?" Ela apontou para a pirâmide de ametista.
"Ah, isso," disse
Karen, dando de ombros. "Comprei porque era a cara da sala de jantar.
Jack, faz alguma coisa com ela! Você que é o médico agora."
Jack pegou a pirâmide, colocou-a
na cabeça de Grace e começou a cantar: "Cristal mágico, afaste a treta!
Que a inflamação vá para..."
De repente, a porta se abriu
novamente, revelando o rosto incrédulo de Leo, o marido de Grace.
"Grace? O que está
acontecendo aqui? Pensei que você ia consultar um oftalmologista!"
Grace, com a pirâmide na cabeça,
sussurrou: "Acho que peguei o caminho mais longo..."
Enquanto Will ria e Karen servia
martínis, uma coisa era certa: nem mesmo a autoimunidade era páreo para o caos
hilário da vida de Will e Grace.
Leo, médico que era, encarava a
cena com uma mistura de incredulidade e resignação. Acostumado às
excentricidades dos amigos de Grace, ele respirou fundo e tentou contornar a
situação da maneira mais racional possível.
"Grace," ele disse
calmamente, "usar cristais pode ser relaxante para alguns, mas não vai
curar sua uveíte. Você precisa de um especialista."
Karen, com um martini na mão,
interveio: "Ah, Leo, deixe a menina se divertir! Nem todo mundo precisa
seguir a cartilha da medicina tradicional, né? Às vezes, o corpo só precisa de
um empurrãozinho cósmico!"
Jack, ainda segurando a pirâmide,
saltou do sofá. "Ela tem razão! É tudo uma questão de equilíbrio! O corpo
da Grace está em uma batalha épica entre o bem e o mal, o yin e o yang, os
linfócitos T reguladores e..." ele fez uma pausa dramática "...os
autoanticorpos!"
Will, aproveitando a deixa,
sussurrou para Leo: "Ele viu outro documentário."
Leo ignorou a piada e tentou,
mais uma vez, argumentar. "Grace, uveíte é uma inflamação séria. Pode
afetar sua visão permanentemente se não for tratada adequadamente. Você precisa
de medicamentos, talvez até de imunossupressores..."
"Imuno... o quê?",
interrompeu Karen, arregalando os olhos. "Isso parece perigoso! E se eles
suprimirem a personalidade dela também?"
Grace, aproveitando a distração,
cuidadosamente removeu a pirâmide da cabeça. “Gente, eu agradeço a preocupação
e o show de stand-up imunológico, mas acho que o Leo tem razão.”
"Mas e a energia dos
cristais?", protestou Jack, visivelmente decepcionado por seu conhecimento
médico pseudo-holístico ter sido ignorado.
"A energia dos cristais pode
esperar," disse Grace, com um sorriso irônico. "Por enquanto, vou
confiar na energia do meu oftalmologista.”
Will, sempre perspicaz, percebeu
a oportunidade de encerrar o assunto. "Que tal comemorarmos a decisão
sensata de Grace com um jantar? Meu cartão de crédito, a escolha da
Karen!"
Karen, imediatamente distraída
pela perspectiva de um jantar caro, exclamou: "Maravilhoso! Quero lagosta
e champanhe! E nada de reclamar sobre a energia dos crustáceos, Jack!"
E assim, a crise de autoimunidade
de Grace, pelo menos por enquanto, foi ofuscada pela promessa de comida,
risadas e a dinâmica caótica, porém amorosa, que só aquele grupo de amigos era
capaz de proporcionar.
No restaurante elegante, entre
goles de vinho branco e sussurros sobre a última gafe fashion de alguém, o
assunto da autoimunidade de Grace ressurgiu.
"Então, doutor Leo,"
Karen começou, gesticulando com um garfo de prata na mão, "explique
direitinho essa coisa de auto-tolerância. É como ter paciência para aturar a si
mesma em um dia ruim?"
Leo, com a paciência de um santo,
respondeu: "Em termos simples, Karen, a auto-tolerância é como o sistema
imunológico reconhece as células do próprio corpo como amigas, não
inimigas."
"Tipo um 'deixa passar' do
corpo?", perguntou Jack, intrigado.
"Exatamente," confirmou
Leo. "Durante o desenvolvimento do sistema imune, as células que reagem
contra componentes do próprio corpo, chamados autoantígenos, são eliminadas ou
controladas. É um processo complexo que envolve o timo, a medula óssea..."
"Ah, o timo! A glândula da
juventude!", exclamou Karen, com um brilho nos olhos. "Eu li sobre
isso em um livro de astrologia!"
Will revirou os olhos, já
prevendo a reviravolta mística que a conversa tomaria.
Ignorando a interrupção, Leo
continuou: "No caso da Grace, e de outras pessoas com doenças autoimunes,
essa tolerância falha. O sistema imunológico começa a atacar as próprias
células e tecidos como se fossem invasores perigosos, causando inflamação e
danos."
"No caso da uveíte da
Grace," ele explicou, apontando para os próprios olhos, "o sistema
imunológico dela está atacando a úvea, a camada intermediária do olho, causando
a inflamação."
"Então, basicamente, o corpo
de Grace está dando um tiro no próprio pé?", perguntou Jack, com uma
careta.
"Em termos leigos,
sim," confirmou Leo, com um suspiro. "A causa exata dessa quebra de
tolerância ainda é um mistério, mas provavelmente envolve uma combinação de
fatores genéticos, hormonais e ambientais."
"Então você está
dizendo", interrompeu Karen, com um ar conspiratório, "que a culpa
pode ser do mercúrio retrógrado?"
Leo massageou as têmporas,
sentindo uma leve dor de cabeça se formando. Will, prevendo a explosão iminente
de Karen sobre astrologia e imunologia, decidiu mudar de assunto.
"Bom, já que estamos falando
de mistérios...", ele começou, com um sorriso malicioso, "alguém sabe
por que a Karen ainda não pediu a segunda garrafa de vinho?"
A distração funcionou. Karen,
momentaneamente desviada do tema da autoimunidade, agarrou a carta de vinhos
com entusiasmo. A conversa fluiu para assuntos mais amenos, entre risadas,
provocações e o tilintar das taças de vinho, provando que mesmo a ameaça de uma
doença autoimune - e as teorias astrológicas de Karen - não conseguiam ofuscar
a alegria contagiante daquela amizade improvável.
O jantar prosseguia em um ritmo
delicioso de risos e vinho. Karen, já na segunda taça, gesticulava com
entusiasmo, quase derrubando um vaso de flores caríssimo.
"Mas me digam, meus
caros," ela anunciou, com um ar de quem estava prestes a revelar um grande
segredo, "como exatamente esses 'auto-coisos' são criados? É como uma
poção mágica que dá errado?"
Will, divertido com a nova
nomenclatura de Karen para os autoanticorpos, quase engasgou com o vinho. Jack,
sempre sedento por conhecimento (ou qualquer coisa que soasse vagamente
científico), se inclinou na direção de Leo, ávido por respostas.
“É um processo complexo, Karen,”
começou Leo pacientemente, “mas, para simplificar, imagine que os
autoanticorpos são como mísseis teleguiados produzidos pelo sistema
imunológico. Normalmente, eles visam invasores como vírus e bactérias.”
“Mas, às vezes,” ele continuou,
“por uma falha na matriz, esses mísseis perdem o alvo e acabam mirando nos
próprios tecidos do corpo. No caso da uveíte da Grace, por exemplo, os
autoanticorpos atacam as células da úvea, causando inflamação.”
“É como se o sistema imunológico
tivesse virado um agente duplo!”, exclamou Jack, dramático como sempre. “Uma
hora ele está te protegendo, na outra está te atacando pelas costas!”
Will, incapaz de se conter,
murmurou: “Parece até a descrição do último namorado do Jack.”
Enquanto o grupo gargalhava, Leo
aproveitou para introduzir outro conceito: “Esses ataques autoimunes podem se
manifestar de diferentes maneiras, chamadas de reações de hipersensibilidade.”
“Hipersensibilidade? Parece que o
sistema imunológico está exagerando no drama, não é?”, comentou Karen, com um
aceno de mão desdenhoso.
“Exatamente,” concordou Leo. “As
reações de hipersensibilidade tipo II, por exemplo, são como sabotagens. Os
autoanticorpos se ligam a células saudáveis, marcando-as para destruição por
outras células do sistema imune. Já as reações tipo III...”
“Tipo III são como bombas de
fragmentação!”, interrompeu Jack, animado por finalmente poder contribuir com
seu vasto (e questionável) conhecimento em imunologia de filmes de ação. “Os
anticorpos formam complexos imunes que se depositam nos tecidos, causando danos
por onde passam!”
Leo, surpreso com a precisão da
analogia de Jack (ainda que por acidente), apenas assentiu.
“Esses são apenas dois exemplos,”
concluiu ele. “As doenças autoimunes podem afetar qualquer órgão ou sistema do
corpo, e as manifestações são tão diversas quanto os próprios pacientes.”
Enquanto a conversa se
aprofundava nos meandros do sistema imunológico, uma coisa era certa: a amizade
de Will, Grace, Jack e Karen era a prova de que mesmo os desafios mais
complexos, como entender a autoimunidade ou as analogias médicas de Jack, se
tornavam mais palatáveis com uma dose generosa de humor e afeto.
A sobremesa, um crème brûlée
deliciosamente cremoso, havia chegado. Karen, agora apreciando um vinho de
sobremesa, ergueu a taça com um sorriso satisfeito.
"Bem, meus caros," ela
anunciou, "aprendemos sobre autoanticorpos e suas sabotagens explosivas,
mas e os tais linfócitos T? Eles ficam só assistindo ao show?"
Leo, sempre paciente, sorriu.
"De forma alguma, Karen. Os linfócitos T são como os soldados de elite do
sistema imunológico. Eles têm diferentes funções, e alguns deles, os linfócitos
T citotóxicos, podem se voltar contra o próprio corpo em doenças autoimunes."
"E como esses soldados de
elite atacam o inimigo interno?", perguntou Jack, fascinado pela metáfora
militar.
"Imagine que cada célula do
nosso corpo possui uma espécie de crachá de identificação, chamado Complexo
Principal de Histocompatibilidade, ou MHC," explicou Leo.
Ele continuou, "Em situações
normais, os linfócitos T reconhecem esses crachás e seguem em frente. Mas, em
algumas doenças autoimunes, eles confundem as células saudáveis com inimigas e
lançam um ataque direto."
"Que horror! É como se os
próprios soldados virassem zumbis!", exclamou Jack, com uma careta.
"Em certo sentido,
sim," confirmou Leo, com um leve sorriso. "Essa reação exagerada dos
linfócitos T é chamada de hipersensibilidade tipo IV, e pode causar danos
significativos aos tecidos."
"E a Grace? Ela está
correndo o risco de um ataque zumbi desses?", perguntou Will, preocupado
com a amiga.
"No caso da uveíte, os
autoanticorpos são os principais responsáveis, mas a hipersensibilidade tipo IV
também pode estar envolvida, dependendo do tipo específico da doença,"
explicou Leo.
Ele continuou, "Nesses
casos, o tratamento pode incluir medicamentos que regulam a resposta dos
linfócitos T, como os corticosteróides."
Enquanto a conversa se
aprofundava nos detalhes da resposta imune, Jack, sempre visual, pegou um
guardanapo e começou a desenhar um diagrama complexo com canetas coloridas.
Células com cara de brava, anticorpos em forma de míssil e explosões coloridas
preenchiam o papel.
Grace, observando a cena com
carinho, percebeu o quão sortuda era por ter amigos tão presentes, mesmo que
suas tentativas de entender a complexidade da autoimunidade resultassem em
desenhos dignos de uma criança de cinco anos.
Afinal, concluiu ela, com um
sorriso, o mais importante era a união e o apoio mútuo, ingredientes essenciais
para enfrentar qualquer desafio, seja ele uma doença autoimune ou as analogias
médicas criativas (e ligeiramente aterrorizantes) de Jack.
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